A Visão apresenta um artigo sobre a evolução dos preços petrolíferos, do qual fez capa. É um exercício estranho. Apresentam-se dados e tiram-se conclusões quase opostas às apresentadas por esses mesmos dados. Comecemos pelo título da capa: "Como eles ganham milhões com o jogo dos preços". Este título denota que o seu autor deve ser fã dos
Mata-Ratos ou que desconhece que petrolíferas é do género feminino.
Depois vem o subtítulo: "Cada cêntimo a mais, durante um dia, no preço do gasóleo e da gasolina representa 230 mil euros nos cofres das petrolíferas. E o Estado também vai buscar a sua parte"
Aqui começa a incoerência. Se virmos, no artigo, a decomposição do preço dos combustíveis ficamos a saber que o Estado não fica com umas migalhinhas, como o sub-título dá a entender. Os dados dizem-nos que os impostos representavam, em Junho de 2008, 59,2% do preço final da gasolina 95 (41,8% referentes ao ISP e 17,4% ao IVA) e 47% do preço final do gasóleo (29,6% referente ao ISP e 17,4% ao IVA) . O peso do Estado é tudo menos desprezível nestas contas.
Temos depois outro interessante gráfico que nos mostra o processo produtivo dos combustíveis desde a extracção do crude até ao automóvel. Há logo um pequeno erro o início quando se escreve que o barril de petróleo "vale" entre 10 a 30 dólares. Errado. Esse é o custo de extracção e não o valor do petróleo. Depois há o gráfico da refinação lê-se nas gordas "Refinação 30% a 40%". Nas magras lê-se "É o peso que os custos de produção e refinação têm no preço final da gasolina e do gasóleo". Ah! Afinal essas percentagens dizem respeito à fatia correspondente ao valor do crude e sua refinação.
Depois mostra-se um gráfico, semelhante ao apresentado
aqui, onde se apresenta a variação percentual do curde e dos combustíveis. A grande diferença está no facto de as taxas de variação do crude (que a Visão não diz qual a rama que tomou como referência) serem calculadas com base no preço em dólares. no meu entender, as taxas deveriam ser calculadas com base no preço do crude em
euros. É esse o valor pago pelos petróleo na Europa. Independentemente desta discordância metodológica, as conclusões do gráfico são semelhantes às que se podem retirar nos meus posts: os preços dos combustíveis têm um comportamento mais suave que o preço do crude. Algo que não se vê no gráfico da Visão mas que é notório nos que apresentei aqui é o desfasamento entre as oscilações do crude e dos combustíveis que no "meu" caso são bastante evidentes enquanto que no trabalho da Visão parece haver paralelismo entre os dois. Parece-me estranho e desconfio que o responsável pelo gráfico tenha feito o desfasamento entre as taxas do crude e dos combustíveis. Em torno desse gráfico desenvolve-se um exercício de
cherry-picking onde se evidenciam os momentos em que os combustíveis não acompanharam as descidas do crude mas se esquecem os casos em que os combustíveis não acompanharam a subida brusca dos combustíveis (ver Julho 2004 no gráfico, por exemplo). Outro detalhe delicioso é o de realçarem a forte subida (25%) no preço do gasóleo em Junho de 2008 ocorrido após a queda mais brusca no preço do gasóleo desde Fevereiro 2004, no mês imediatamente anterior (-11%). A malta esquece-se que está a trabalhar com taxas de crescimento e que não pode tirar conclusões muito rápidas a partir destes valores. Faça-se o seguinte exercício: suponha-se que um determinado produto custa 100 em Janeiro, 80 em Fevereiro e novamente 100 em Março. A taxa de crescimento de Fevereiro para Março teve de ser a mesma que a de Janeiro para Fevereiro mas de sinal contrário, certo? Errado! Em Fevereiro o preço caiu 20% mas em Março subiu 25%. É fazer as contas... As fortes subidas depois de fortes quedas têm de ser lidas com cautela. E da boa.
Finalmente conclui-se, à semelhança do que aconteceu
aqui, que a variação total do preço do crude foi muitíssimo superior à variação do preço dos combustíveis, ao contrário do que o artigo sugere (mais em consonância com o
vox populi). O crude aumentou 280% desde 2004 enquanto que a gasolina aumentou 53% e o gasóleo 85%. Claro que esta conclusão seria de esperar à partida já que o crude só pesa entre 30% e 40% no preço final. Logo aí, a variação dos combustíveis em função do crude nunca poderia ser superior à deste ainda por cima num contexto em que é notório o paralelismo, ainda que desfasado, entre o crescimento do preço do crude e dos combustíveis.