27 outubro 2009

Órgão barroco vs romântico



A pedido de uma família venho tentar explicar a diferença entre um órgão barroco e um órgão romântico.

O som do órgão evolui ao longo dos tempos em função do gosto musical de público e compositores e da tecnologia disponível. Desde o princípio da sua história, o órgão teve por objectivo a imitação de outros instrumentos algo que hoje fazemos com o recurso a sintetizadores. Mesmo o seu registo mais característico (o chamado Principal que em geral compõem as fachadas) tinha por objectivo, a partir de determinada época, fundir-se com a voz humana que por sua vez acompanhava e sustentava. A evolução técnica permitiu que os órgãos passassem a conseguir imitar flautas, trompetes, oboés, bombardas, violas da gamba (espécie de violoncelo arcaico), cornetas, gaitas de foles, trompas, etc... A forma como essas "imitações" soavam foi evoluindo de forma acompanhar os gostos, os novos instrumentos que iam aparecendo e desaparecendo e a as transformações tímbricas que os instrumentos "imitados" iam sofrendo. Não se pense que o objectivo principal era exclusivamente o de imitar outros instrumentos. A partir do século XV começa a desenvolver-se um repertório próprio para o instrumento e a partir do final do século XVI já temos exemplos de algum virtuosismo. As capacidades sonoras do órgão são em alguns aspectos superiores aos da orquestras nomeadamente ao nível da profundidade sonora (capaz de sonoridades no limite do subsónico e do suprasónico) e do virtuosismo.

Não existe propriamente um órgão barroco mas sim várias escolas dentro deste: órgão francês, alemão, ibérico, inglês... Mas acho ser possível características que são mais ou menos comuns em termos de sonoridade:

a) O órgão barroco privilegia a clareza das notas. Na música de tecla, o período barroco representa o período àureo do contraponto. O contraponto é um tipo de escrita - que pode ser aplicado a qualquer instrumento, coro ou agrupamento instrumental - que joga com a conjugação de diferentes discursos musicais - que soariam bem se tocados isoladamente - e que se misturam
resultando num efeito muito rico superior à soma das partes. Quando se compõem peças que chegam a combinar até 6 discursos musicais em simultâneo, torna-se óbvio que o instrumento que as toca tem de ser capaz de produzir um som claro em que os harmónico fundamentais sobressaem.

b) O ideal estético-sonoro dos registos Principais ainda privilegia as semelhanças com a voz humana. Verifica-se que na sua concepção técnica, a emissão de som no órgão barroco tem muitas semelhanças com o mecanismo de produção de som da voz humana.

c) O ataque das notas (as primeiras fracções de segundo na produção de som) é bem presente e notório. Nos registos de Plauta e Principais é muito normal ouvirmos o "chiff" (expressão inglesa) de cada vez que uma nota é tocada.


A partir de meados do século XVIII o órgão entra num período de esquecimento devido à chegada do período clássico e que é, em grande medida, uma negação dos princípios estéticos do barroco. Com estes novos ventos, o órgão deixa de ter grande interesse enquanto instrumento solístico e praticamente se deixa de compôr repertório que tenha em vista a utilização plena das capacidades do órgão.

Chegados ao século XIX, com a redescoberta de Bach e a revalorização do contraponto regressa o interesse pelo órgão. No entanto, a arte da organaria não irá tentar recuperar a arte do barroco mas sim procurar novos caminhos em linha com o gosto e tecnologia da época. O líder incontestado do novo movimento organeiro foi um catalão naturalizado francês chamado Aristides Cavaillé-Coll. É ele quem afirma a nova corrente do órgão romântico e sinfónico. A tecnologia existente a partir de meados do século XIX permite construir órgãos maiores e com volume sonoro superior. Tal como a orquestra do século XIX é muito superior à do século anterior ao nível do número de músicos, variedade de instrumentos, e dinâmica sonora também assim acontece com o órgão. Este é agora capaz de produzir sons que vão desde o pianíssissimo (quase inaudível) ao muito forte (de fazer estremecer as paredes) e detém uma palete sonora muitíssimo mais extensa que em épocas anteriores. Nem todos os órgãos de estética romântica são sinfónicos uma vez que nem sempre foi possível ou desejável construir instrumentos de grande dimensão. Mas as características sonoras comuns pode resumir-se a:

a) Registos labiais (principais e flautas) mais suaves com menor preponderância dos harmónicos fundamentais. Ouça aqui um exemplo de um Principal de 8' Barroco e o correspondente Romântico.
b) Surgimento de um novo tipo de registo ("registos de corda" se quisermos utilizar a tradução literal da nomenclatura inglesa) que pretende imitar as secções de corda das orquestras. Tal é feito com recurso a registos labiais de secção estreita que faz sobressair os harmónicos superiores. Oiça o registo Principal 8' , o registo Gamba 8' e o registo Salicional 8' do órgão Aeolian-Skinner instalado no Kellogg Auditorium nos EUA. São registos com tubos de medida sucessivamente mais estreita.
c) O ataque das notas passa a ser praticamente imperceptível.
d) Grandes possibilidades de variação do volume do som (dinâmica). Não só devido a uma maior variedade de registos- uns com maior outros com menos volume - mas também devido à instalação de persianas em algumas secções do órgão, controladas pelo pé do organista, e que permitem fazer variar a sua abertura e consequentemente o volume de som emitido.



Para compreender todo este palavreado o melhor é tentar ouvir alguns exemplos tirados da internet. No entanto, isso não é tarefa fácil uma vez que temos de encontrar duas peças do mesmo autor tocadas em órgãos barrocos e românticos com escolhas de registos que sejam semelhantes e com a mesma afinação. O exemplo mais feliz que consegui encontrar foi o da execução da Passacaglia BWV582 de J. S. Bach que se pode escutar abaixo.

Passacaglia num órgão barroco


Repare-se no "chiff" que sai de cada vez que uma nota é tocada.

Passacaglia num órgão romântico


O som é neste caso mais redondo, aveludado não se ouvindo o ataque das notas.



Não quero deixar de aproveitar para divulgar esta excelente gravação de um órgão barroco. A qualidade de som é óptima e permite que se perceba a riqueza e o carácter de um excelente órgão barroco com quase todos os registos activados (plennum).

Passacaglia numa excelente gravação e num excelente órgão barroco - órgão Trost em Waltershausen, Alemanha.


Infelizmente não encontrei gravações com esta qualidade para um órgão romântico. Deixo aqui duas que podem ser esclarecedoras.



Demonstração de um famoso e excelente representante do órgão romântico - o órgão Cavaillé-Coll da igreja de St Sulpice em Paris (sim a do código de Da Vinci).



E uma boa gravação de uma peça de Schumman tocada no órgão Skinner na Universidade de Yale

14 outubro 2009

Dr. Paul on the Iranian Nuclear Program

01 outubro 2009

O nascimento de um novo órgão


Foi ontem inaugurado o novo órgão do Mosteiro dos Jerónimos! Um momento assinalável pois era uma pena (para não dizer vergonha) que uma das mais monumentais igrejas do país não tivesse, desde há mais de 50 anos, um instrumento digno para a liturgia e concertos. Ao que parece, a intenção inicial era a de construir um grande órgão mas as autoridades responsáveis pelo património e por este monumento em particular puseram algumas dificuldades (oportunas ou não, desconheço) o que originou que optasse antes por construir um órgão de coro transportável (quando lá forem espreitem por baixo que vão ver umas rodinhas).

O projecto foi entregue ao organeiro suíço Hermann Mathis, que já havia cumprido com sucesso a tarefa de construir um órgão de coro móvel na Capela Sistina e que construiu recentemente um órgão papal em Regensburg. O organista do concerto inaugural foi Wolfgang Seifen - que compôs a cantata do 80º aniversário do papa Bento XVI - e improvisou em vários estilos durante todo o concerto(!) em alternância com o coro de Santa Maria de Belém. O conjunto "ideal", portanto, para este bastião da ortodoxia católica que é a paróquia de Santa Maria de Belém. Com uma acústica particularmente difícil, a concepção e harmonização deste instrumento devem ter sido um grande desafio para o organeiro. O resultado final mostra que o objectivo foi, mais que conseguido, transcendido. Órgão de sonoridade presente mas não agressivo, com uma clareza e definição do som que denota um trabalho de excelência. Disse-me alguém do coro que apesar do órgão praticamente não ser visível a partir do local onde este canta habitualmente, este ouve-se melhor do que o órgão electrónico que antes os acompanhava e que estava instalado mesmo ao lado(!). Mais uma prova de que não há nada como o original e de que cada cêntimo gasto num órgão de tubos de qualidade tem um enorme retorno. Mosteiro dos Jerónimos, Lisboa e Portugal estão de parabéns.

Nas notas do programa inaugural o órgão é referido como tendo uma concepção barroca. Do que ouvi e vi, de barroco só se for a disposição dos registos. De resto, o órgão soa (e muito bem) a órgão romântico/moderno com timbres suaves e ricos em harmónicos. Outra decisão tomada pelos promotores do projecto e organeiro foi o de dividirem alguns registos em mão esquerda- mão direita como é típico em instrumentos ibéricos. Se acho que não fica mal dar um toque português/ibérico a um instrumento como este, o mais coerente e consequente seria ter construído um órgão de carácter ibérico do ponto de vista sonoro. É verdade que se podem tocar meios registos - género tipicamente ibérico em que do lado esquerdo do teclado o organista dispõe de timbres diferentes, e por vezes contrastantes, dos do lado direito - mas num órgão com sonoridade romântica/moderna alemã não sei se vai dar grande resultado.

Esta é aliás a única crítica que se poderá fazer a este projecto. Não teria sido mais adequado construir para os Jerónimos um órgão que tivesse alguma coisa a ver com o órgão ibérico, e mais concretamente com a tradição portuguesa de organaria? Não pedia que soasse igual aos órgãos históricos mas que representasse uma evolução que parte desse património. Como se a actividade organística genuinamente portuguesa não tivesse sido interrompida entre meados do século XIX e início do séc. XXI. Resta a esperança que venha a ser construído, por um português ou não, um grande órgão nos Jerónimos e que faça jus ao monumento não só do ponto de vista histórico como também sonoro.