16 fevereiro 2007

O Flautista de Hamelin


O grande Ricardo Araújo Pereira é um gajo brilhante. Isso é um lugar comum e não é novidade para ninguém. Elevou a parvoíce ao estauto de arte e tornou a pronúncia do Norte mais eficaz que o gás hilariante. Para além de humorista e semi-actor ainda tem jeito para a escrita. As suas crónicas na Visão conseguem ter quase tanto sucesso cibernáutico quanto os sketches fedorentos. O mais fantástico é que a graça que tem na TV, consegue passá-la para o texto e sem a muleta das caretas e dos sotaques. Nas crónicas desmonta de tal forma os assuntos que aborda que qualquer um se porá a pensar "realmente... visto desta, maneira" enquanto se recompoem das gargalhadas. Aquelas dúvidas, mais ou menos existenciais, que eram latentes no fundo do nosso subconsciente (e que lá permaneciam "derivado" ao nosso consciente as considerar "parvoíce") vêm ao de cima e são eficazmente dissecadas pelo nosso sublime felino.
Depois o RAP utiliza uma técnica salva-vidas. Os americanos denominam-na Low Self Opinion (LSO): eu sou parvo e tudo o que diga é, para todos os efeitos, parvoíce. É uma técnica que já era utilizada pelos bobos e saltimbancos da Idade Média. Em primeiro lugar, tem piada. Gozar connosco próprios tem um elevado nível de "comicidade" e ainda ninguém tinha explorado esse filão em Portugal. Em segundo lugar, protege o nosso tareco de qualquer asneira ou barbaridade que venha a proferir: o RAP considera-se parvo e aquilo é, para todos efeitos, parvoíce que não tem qualquer objectivo sério. Quem objecte às suas piadas ou algum sketche cai imediatamente no ridículo porque quem se ofende com pura parvoíce é ainda mais parvo. Já funcionava com os bobos. E assim, alegremente, o RAP consegue fazer passar a sua mensagem. De uma forma aparentemente inócua mas eficaz "cumó caraças". Para além disso, por ser um gajo encantador, tem Portugal enamorado dele. Neste momento tem 8 milhões de guarda-costas de opinião ( os outros, ou não têm idade para compreender português ou já ensurdeceram quando o Gato Fedorento começou) em caso de algum ataque de um malfeitor que lhe aponte algum erro ou incoerência. Se este blogue fosse conhecido eu estava definitivamente tramado pela análise que me preparo para "inicializar".



Na sua última crónica o RAP, certamente por falta de assunto na ressaca referendária, puxou de uma ideia que tinha na gaveta: a questão da comida com sabores a tudo e a nada (iogurtes, batatas fritas, águas e afins). Com a sua agudeza habitual, o nossos querido felino desmonta esta realidade dos sabores em tudo o que é porcaria. É um assunto tão banal que creio que nenhum de nós se tinha detido ainda a pensar nisso. No final do artigo, fica-nos a sensação de que o cronista, a brincar a brincar, foi muito prespicaz e disse umas verdades. RAP é muito bom no que faz. Só houve um detalhe que me fez acordar do feitiço deste flautista de Hamelin. No final da crónica escreveu uma frase que me deu um arrepio na espinha: ""No balde dos porcos. Foi nisso que se transformou a nossa alimentação. Em lavagem. E alguém tem de fazer alguma coisa, antes que apareça o espa(r)guete com sabor a leite condensado." Alarme! Penso eu, ainda a esfregar os olhos: "É pá! O que é que temos aqui? Ora... um chavão políticamente correcto... uma teoria da conspiração... e anseios de centralismo (estatal?) "
Se o RAP nos tirou do subconsciente uma questão para muitos adormecida e que merece ser reflectida e discutida, por outro lado e muito subtilmente o f(el)ino humorista também nos deu pistas para as suas causas e solução. De uma forma primária mas muito eficaz e que dará os seus frutos se acompanhada de outros estímulos no futuro. O leitor é induzido a pensar que a alimentação se transformou numa aberração (chavão políticamente correcto) cujos responsáveis são as grandes multinacionais da alimentação (teoria da conspiração de raíz marxista) e que alguém tem de fazer alguma coisa para deter esta espiral (centralismo ou Robin-Hoodismo). RAP nunca se deteve a pensar que, do lado da procura, estas "mixórdias" são perfeitamente justificadas. Nenhuma empresa lança um iogurte com sabor a jinseng e canela porque lhe apetece. Comparar a colocação deste produtos no mercado a medidas do foro estatal é, para além de insultuoso para as empresas, ignorância ou vício de raciocínio. Se fosse o Estado ter ideias de produtos inovadores já teria sido lançado (e retirado) o iogurte com sabor a bacalhau. Por decisão de um ministro da ala Sudoeste, aplaudido pelos seus secretários de Estado, sub-secretários e subsecretários adjuntos, devidamente financiados do erário público uma vez que visam o "bem público".



A sugestão de que "alguém tem de fazer alguma coisa" é que me deixou realmente banzado. Coitado do gajo que tiver de fazer alguma coisa. É que para produtos gastronómicos com inspiração nas manjedouras dos porcos, nós os tugas somos imbatíveis: cozido à portuguesa, gaspacho, sopas de cachola, arroz com miúdos, etc... O RAP tem a certeza que já viu um porco a tomar o seu repasto? Não deve existir gastronomia no mundo mais "mixordenta", javardola e, ao mesmo tempo, tão deliciosa como a portuguesa. Por isso não invejo a sorte da autoridade que tenha a triste missão de "fazer alguma coisa" para acabar com a alimentação javarda.