23 agosto 2006

Mercados em Tensão (1)


Ainda a propósito da abertura do mercado de electricidade, e pegando no mote dado por Sérgio Figueiredo (referido aqui), apraz-me tecer algumas considerações sobre o assunto.

Os governos de Portugal e Espanha desejam que os sistemas de electricidade passem a ser completamente livre, à semelhança de outros sectores igualmente vitais como por exemplo as telecomunicações. Não vou discutir as diferenças entre privatizar comunicações e electricidade, ficando isso para futuras postas.

O que se passa actualmente é que na Península Ibérica os sistemas eléctricos são semi-livres. Passo a explicar: para alguns clientes (os grandes) já é possível optar pelo fornecedor e negociar preços. Estes, ou vão ao mercado encontrar bons preços ou optam pelo sistema público cujos preços e condições de acesso estão pré-definidas. Pretendem os governos ibéricos que isto possa acontecer com todos os consumidores.

Em primeiro lugar convinha explicar sucintamente o negócio da electricidade no nosso país. Actualmente o sector está definido de forma a existirem, por um lado, os produtores de electricidade em que cada um recorre a diferentes tipos de energia primária e tecnologias para produzir electricidade. Do outro lado estão os distribuidores de electricidade, que se encarregam de vender a electricidade ao consumidor final. No meio, existe a rede de transporte, encarregue da gestão global do sistema de forma a que, em cada segundo, a oferta seja igual à procura – uma espécie de espinha dorsal do sistema.

Acontece que, em Portugal, a maior parte dos produtores e dos distribuidores se inserem no chamado sistema público. Público porque são o governo e a entidade reguladora (ERSE) quem decide a sua composição, as regras de funcionamento e os preços a praticar. Existe depois um sistema não-público (os denominados não-vinculados) em que as autoridades apenas definem as regras de funcionamento (mas não os preços ou composição do sector) e em que tendencialmente quaisquer agentes que desejem entrar podem fazê-lo – quer a comprar, quer a vender energia – desde que cumpram uma série de requisitos.

No sistema público, em termos de operação diária, os produtores obedecem às ordens do gestor global do sistema (que no nosso caso é a REN). A gestão é feita de modo a que o custo de produção seja o mais baixo possível tendo em consideração as restrições técnicas existentes, quer ao nível dos centros produtores, quer ao nível das redes. Os produtores são remunerados em função dos combustíveis que consomem e de uma parcela fixada pelo regulador e que se destina a remunerar o capital investido e cobrir custos fixos. A produção é vendida ao transportador (a REN) que é quem lhes paga.

Do lado dos distribuidores, estes compram a electricidade a um preço “fixo” e vendem a um preço “fixo”. Digo “fixo” porque, na realidade, este está tabelado em função da hora do dia (na compra), do tipo de consumidor a que se destina (na venda). As regras de compra e venda são definidas pelo regulador. A electricidade comprada por estes é paga à REN.

O transportador acaba por servir de “buffer” financeiro entre os distribuidores e os produtores porque o preço “fixo” a que a energia é vendida aos distribuidores não é necessariamente igual ao preço a que ela é comprada aos produtores. No caso de, num determinado ano, volume de vendas ser inferior ao de compras isso dará origem a um défice tarifário que terá de ser somado ao défice/superavit acumulado de anos anteriores. A entidade reguladora, define os diversos preços ao longo de toda a cadeia (desde o produtor até ao consumidor final) tendo a obrigação (pelo menos em teoria) de manter os défice/superavit tarifário acumulado iguais a zero. No caso dos pequenos consumidores esta revisão é anual e no caso dos grandes consumidores, as alterações são semestrais.
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(continua)