Bach, o Ómega
Aproveito o 283º aniversário da primeira apresentação da Paixão Segundo São João, para dedicar uma (1ª) posta a este digníssimo músico e compositor.
Nascido em Eisenach (cidade onde Lutero estudou e traduziu a Bíblia), no seio de uma numerosa família luterana de músicos – contam-se mais de 80 Bach’s que exerceram cargos musicais – muito conhecida na Saxónia e Turíngia, Bach não terá sido uma criança prodigiosa mas era, certamente, bastante dotada. A morte dos pais, aos dez anos, dita o início de uma vida nómada e que foi determinante para a formação do seu universo musical. A sua primeira paragem é a cidade de Ohrdruf onde vai viver com o seu irmão, organista discípulo de Pachelbel, e onde tem as primeiras lições “a sério”. Relatos tardios da sua infância com o seu irmão dão conta de uma enorme vontade de aprender e de conhecer a melhor música que se fazia na Europa. No curto período de pouco mais de 4 anos apreende toda a escola pachelbeliana (a colecção de prelúdios corais de Neumeister assim o atesta) e, aos 15 anos, é já um jovem emancipado que vai finalizar os seus estudos académicos na cidade de Lüneburg, perto de Hamburgo, e prosseguir com a sua formação de organista ganhando o seu sustento a cantar e tocar ocasionalmente. Em Lüneburg, tem a sorte de tomar contacto com a tradição musical italiana e, principalmente, francesa presente nessa cidade graças à corte de Celle, que acolhia uma orquestra de músicos franceses.
Convém esclarecer que, à época, não existia uniformidade na prática musical e cada região continha as suas especificidades. Sabe-se que os padrões de afinação dos instrumentos eram diferentes de cidade para cidade e que as práticas interpretativas eram substancialmente diferentes de região para região e até as normas de notação musical eram heterogéneas. Na Europa existem claramente 5 escolas musicais: a italiana (de longe a mais pujante e influente), a francesa (concebida ao gosto de Paris), a alemã, a inglesa e a ibérica (estas duas últimas menos influentes). Na Alemanha de então predominavam duas (sub)tradições: no Norte o stylus phantasticus, no Sul um estilo mais simples, austero e contido.
A única forma de aprender música e apreender as diferentes escolas era o learning-by-doing. Havia que copiar partituras a partir de cópias de cópias. A música impressa era rara e cara. Os tratados musicais ainda eram mais raros. A formação de um músico era feita de “peregrinações” às cidades onde trabalhavam os grandes mestres para aí aprenderem, copiarem e praticarem a sua música.
Bach não foi excepção e é em Lüneburg que toma contacto com o segundo grande mestre, o organista Georg Böhm. Böhm já se insere na linha dos compositores do Norte da Alemanha ainda que também adoptasse características do estilo francês tão ao gosto da corte. É também um mestre da variação, em particular das partitas corais. São, muito provavelmente, desta época as 5 partitas corais de Bach que mostram um aluno bem à altura do mestre e claras influências do estilo francês. Bach familiariza-se com os compositores franceses François Couperin, André Raison e Grigny dos quais copiou muitas partituras para a sua colecção pessoal.
Os dois anos que passou em Lüneburg são pontuados por diversas visitas a Hamburgo para aprender com os grandes mestres organistas que aí trabalhavam, em especial Johann Adam Reinken, e tomar contacto com a fervilhante actividade musical da cidade. Hamburgo era uma cidade próspera e livre e isso reflectia-se na vida musical: tinha um teatro de ópera, um afamado Collegium Musicum (orquestra formada por cidadãos e eventualmente alguns músicos profissionais) e alguns dos maiores órgãos barrocos do mundo.
Os pouco mais de dois anos que passou em Lüneburg (1700 a 1702) devem ter sido extremamente proveitosos em termos de aprendizagem como comprovam as primeiras composições pós-1700. Consegue o seu primeiro emprego como organista em 1703, na cidade de Arnstadt, a ganhar o dobro do salário do seu antecessor… Os primeiros anos da carreira profissional de Bach são devotados essencialmente ao órgão embora, esporadicamente, tenha composto peças vocais e para cravo. Ainda lhe faltava encontrar-se com um último grande mestre do órgão, Dietrich Buxtehude, que na altura trabalhava na cidade de Lübeck. Em Outubro de 1705 tirou um mês de licença para ir, a pé (!) até lá, mas regressou apenas em Janeiro do ano seguinte… Como é óbvio, as autoridades não ficaram nada satisfeitas (tiveram de passar o Natal com um aprendiz de organista) e repreenderam-no. Após este episódio as coisas azedam até ao ponto de ruptura. Os conflitos com as autoridades eclesiásticas e municipais em Arnstadt serão apenas os primeiros de uma longa série que se prolongará vida fora.
Os empregos seguintes, Mühlhausen e Weimar culminam a sua carreira de organista e vão, progressivamente, acrescentando mais responsabilidades musicais que espelham uma ascensão na carreira, algo com que Bach se preocupou ao longo da sua vida. É por esta altura que Bach conhece a música de Vivaldi e outros mestres italianos dos quais o seu patrono era aficcionado e comprava partituras durante as suas viagens. Apesar de as provas documentais da época já o considerarem o maior organista e intérprete de tecla alemão, nem sempre o talento lhe foi suficiente para conseguir o emprego desejado. São diversos os episódios em que Bach foi preterido face a outros candidatos por razões extra-musicais. Ainda assim, Bach conseguiu sempre ascender a posições cada vez mais importantes.
Depois de uma briga muito feia com o se patrão em Weimar, em 1717, o músico muda de agulhas. Segue para a corte de Köthen como Mestre de Capela onde, durante 4 anos, se dedica em exclusivo à música de câmara e suspende a produção de música sacra (a corte era calvinista). Sendo o príncipe um músico entusiasta que viajava em tournées com alguma frequência, Bach teve a oportunidade de tomar contacto com a melhor música de câmara da época e, ele próprio aprofundar a composição para orquestra e tecla. Nascem, nesta época duas colecções muito conhecidas: os concertos de Brandemburgo e o primeiro livro de “O Cravo Bem Temperado” (em rigor deveria ser traduzido como “O Teclado Bem Temperado”). Circunstâncias diversas provocaram o progressivo apagar do entusiasmo musical do príncipe e Bach procurou novo emprego. Em 1723 substitui o kantor Kuhnau mas apenas porque Telemann recusou o convite das autoridades e os principais candidatos rivais (Fasch, Graupner), por diversas razões, retiraram as suas candidaturas.
Tecnicamente, Bach fora despromovido de Mestre de Capela a Kantor mas, na realidade, o novo cargo em Leipzig era mais prestigiante dada a importância da cidade. Em Leipzig, Bach tem o período mais produtivo da sua carreira em três anos escreve a maioria das cerca de 500 cantatas que se crê que compôs (apesar de apenas terem sobrevivido cerca de 200) e 5 paixões (sobraram apenas 2). No final deste período, o entusiasmo esmorece-se não se sabendo exactamente porquê. As hipóteses são os conflitos com as autoridades, a degradação das condições e meios para a prática musical nas igrejas ou simplesmente porque a enorme quantidade de material produzido seria o suficiente para manter ocupados os coros e orquestras das igrejas de Leipzig. Em 1729 fez-se director do Collegium Musicum de Leipzig (fundado por Telemann) que realiza actuações regulares no famoso Café Zimmermann, o que permitiu a Bach manter-se activo na produção e execução de música profana. A partir desta altura Bach começa a preocupar-se em fazer publicar a sua música e afirmar-se como compositor a um nível superior. Acabou por publicar 4 colecções, denominadas Clavier-Übung (Exercícios para tecla), de carácter eminentemente prático, que consistem em i) 6 partitas para tecla (BWV 825-830) ii) Concerto Italiano (BWV971) e Abertura Francesa (BWV831) iii) Missa Alemã para órgão (BWV669-689) IV) as Variações Goldberg (BWV988); publicou ainda os "Corais de Schübler" e as "Variações Canónicas sobre «Vom Himmel hoch»", ambos para órgão; e publicou a “Oferenda Musical” e iniciou a impressão de “A Arte da Fuga”, obras de carácter mais absoluto uma vez que são mais tratados de composição e de contraponto do que música prática. Curiosamente, “O Cravo Bem Temperado” não conheceu impressão antes de 1801. Até então, circulou apenas em cópias manuscritas. A restante obra de Bach sobreviveu graças às cópias feitas por alunos, colegas, entusiastas e a biblioteca da Thomaskirche, em Leipzig. Muito material se terá perdido.
E perdeu-se porque o interesse em Bach era restrito a uma elite de músicos e melómanos. Só esses tinham capacidade de apreciar a imensidão da obra de Bach em toda a sua altura, largura e profundidade. Bach viveu a maior parte da sua vida num período de transição do Barroco para o classicismo. A partir de 1730, Bach foi cada vez mais considerado antiquado. O estilo clássico foi, sob muitos aspectos, uma antítese do período anterior na medida em que a estética adoptada é muito mais horizontal e simples por oposição a um barroco “intrincado” e exigente ao nível técnico e auditivo. Esta reacção deve-se essencialmente ao facto de as elites musicais terem perdido progressivamente o seu peso em termos da afirmação do gosto musical. A prática musical tornou-se cada vez mais “democrática”. A classe burguesa gosta cada vez mais de música e de a tocar e, não sendo músicos profissionais, necessitam de peças fáceis de executar e fáceis de ouvir. Aos compositores é-lhes exigida música ao gosto dos seus clientes, que estão em casa, nos teatros, nas festas e nas igrejas e que podem pagar partituras e concertos. Não foi este mundo em que Bach cresceu e foi educado. Como um artesão, foi-lhe incumbida a responsabilidade de sublimar a sua dinastia e a sua elite. Não fazia parte da sua formação ou da sua personalidade fazer concessões ao nível do gosto e da sua arte. Já Telemann, Vivaldi e Handel viveram em função do público e como tal foram acarinhados e a sua popularidade foi, em vida, maior que a de Bach, que apenas era reconhecido como o maior executante de tecla do seu tempo.
A curiosidade e empenho de Bach tornaram-no um erudito musical, afastado dos ideais estéticos que, a partir do início do século XVIII, começaram a emergir. Conhecia bem o repertório desde o Renascimento até aos seus dias (mais de 200 anos de produção musical), conhecia o trabalho dos melhores compositores europeus, era exímio na arte do contraponto e da harmonia. Foi um “cientista” musical e que conseguiu sintetizar na sua obra o melhor do que havia no universo musical anterior a ele. Não foi um inovador, mas levou até ao limite do sublime todo o universo musical que conheceu e aprendeu. Afirmava: «o que alcancei através do trabalho e da aplicação, qualquer pessoa com um regular talento natural e habilidade pode também alcançar. Quando realmente se quer, pode-se fazer tudo […]». À semelhança de Newton, Bach viu mais longe que ninguém porque “subiu aos ombros dos gigantes”.
Nota: artigo actualizado em 9/04/2007
1 Commets:
Bela posta!
Penso que iría gostar d eler Ivan Kadlecik, um escritor e músico eslovaco que tem na sua obra um constante referência a Bach.
J.
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